Passado o trem do ENEM…

Quando temos uma grande viagem programada há meses, quanto mais próximos do dia, mais ansiosos ficamos. A preparação vai crescendo aos poucos, dos detalhes e luxos dos dias mais distantes, às pressas finais de colocar tudo na mala.

Um dos momentos mais interessantes do processo, é quando se está aguardando a partida, tudo está pronto, tudo que podíamos esquecer já está mesmo esquecido e o que pudemos fazer, fizemo-lo! É aquele instante em que esperamos o ônibus dar a partida e sair lentamente da rodoviária ou o avião terminar de taxiar para preparar o arranque inicial. Em Minas, culturalmente temos a visão do trem que fica na estação donde vamos nos despedindo das pessoas, jogando conversa fora até que vem o arranque – brusco por vezes – e vamos saindo.

Ainda em Minas, trem não é apenas o meio de transporte. Trem é um “substantivo universal” que descreve toda e qualquer coisa. Praticamente tudo pode ser substituído pela palavra “trem”. E o trem desses últimos dias 3 e 4 de novembro foi o ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio.

Puffing Billy - extraído de sxc.hu

A grandeza do Exame de fato o qualifica como um grande trem! Independentemente das bem vindas críticas, de fato são números gigantescos de candidatos, de custos, de episódios, etc., etc. E não se trata apenas de uma expressão idiomática chamar o ENEM de trem, de fato, a metáfora casa bem, pois o Exame é também um veículo de transporte para dentro das universidades, sonho de muita gente.

O ENEM é, de maneira paradoxal, o ponto de chegada e o ponto de partida. Como ponto de chegada, a ele vai tudo o que descrevíamos no início do texto, as pessoas se preparando, se esforçando, ganhando força a cada dia até o instante final do trem partir, do trem acontecer!

Agora, ficam os candidatos repassando as questões, comentando o tema da redação e pensando nas próximas estações. Alguns já se preparam para as segundas etapas dos vestibulares, outros preferem aguardar os resultados, outros ainda sabem que não foi dessa vez, infelizmente.

Como numa viagem qualquer, o mais importante do ENEM é não nos perdermos. De alguma maneira, parece que fazer a prova se torna a coisa mais importante do processo. De fato, ela se tornou necessária para muitas das jornadas acadêmicas no ensino superior brasileiro, mas ela não reflete o único caminho da carreira profissional. A carreira profissional é um conceito bem mais amplo do que uma prova.

"The missing piece" - extraído de sxc.hu

Prosseguindo na metáfora, porventura ocorre, durante o percurso entre o ponto de partida e o ponto de chegada, de repensarmos sobre o que queremos fazer de fato ao final da viagem. A ansiedade que antes obscurecia a reflexão, dá lugar a um olhar mais realista. Não é incomum candidatos descobrirem nesse instante pós-provas o curso que desejam, o rumo que corresponde aos anseios futuros, o tamanho da pressão desnecessária que estava sob seus ombros. E é comum, também, descobrirem que o vestibular é uma via possível, mas não a única!

Passada a etapa das provas, quando o ser capaz de “responder às questões corretamente” parece ser o mais importante de tudo, fica mais fácil para os muitos candidatos ponderarem acerca do que de fato é mais importante: a escolha pessoal de cada um. Ora, a carreira não pode ser o resultado de um sucesso numa ou noutra prova, mas sim o reflexo de uma série de decisões e oportunidades muito singulares, pesadas na balança individual da vida. Se antes das provas, todos eram supostamente iguais porque fariam a mesma prova de português, ciências exatas e etc., agora fica mais fácil discernir os contornos dos candidatos ao escolherem o que fazer diante do resultado, seja ele abaixo do esperado seja o resultado que os habilita a continuar nesse processo.

"Navigation betwen zero and ten" (sic) - Extraído de sxc.hu - user: Kriss Szkurlatowski

O ponto decisivo está aqui: não no resultado do ENEM, mas nas escolhas que vem depois das provas. O caminho acadêmico é de fato o caminho desejado? Se sim, qual é o curso apropriado? Não para a família, para os amigos, mas para aquele que está decidindo, para quem fez as provas. As mãos que agora preenchem gabaritos, no futuro vão se empenhar nos estudos para daí então receber um diploma. Tudo fruto de uma seqüência de escolhas que não responde ao acaso, mas responde sim ao desejo particular. Trata-se de uma jornada de escolhas, não de provas. E uma jornada de escolhas muitas vezes é feita na companhia e não solitariamente. Isso alivia os candidatos de terem que dar conta de tudo por si só e tão só.

Quando olhamos para tais processos seletivos, dentre os quais o ENEM é o mais emblemático na atualidade, enxergamos um gigantesco trem, lotado vê-se apenas a massa. No entanto, é perigoso ficar nessa visão global, superficial. Na verdade, todo vestibular vai muito além de um exame, é uma etapa do acontecimento de sonhos, é uma das muitas estações da vida.

Central Station Melbourne - Extraído de sxc.hu

E nós bem sabemos que para os destinos que nós escolhemos nem sempre as estações dos outros são as nossas estações. Existem muitos caminhos para se chegar num determinado lugar, principalmente quando se fala de carreira. Claro! Algumas rotas possuem seus gargalos, suas pistas únicas. Mas o sonho prova-se sempre muito maior do que esses instantes. E tem que ser assim. Porque se não fosse, o que nos faria persistir?

O trem que partiu no fim de semana é um trem que carrega muita gente dentro de si. Vem cheio, farto como lhe é peculiar. Mas não é carga que aqui vai. É riqueza. São riquezas, na verdade. E para cada uma há que se olhar com o respeito pelas escolhas, pelas estações de cada um, passadas e vindouras.

Cada qual vai perseguindo o que pode, o que quer e o que consegue. E o que se dedica de verdade, costuma descobrir sua força com grata surpresa. O percurso intimamente se delineia numa conexão legítima, pois segue os rumos do que importa: das escolhas verdadeiras. Felizmente segue seu próprio eu.