Com o cântaro às mãos

Há uma situação que de maneira contumaz requer nossa atenção. Trata-se dos afoitos desejos que se precipitam no agora, fazendo com que a realidade assuma formas e cores diversas daquelas reais e causando muita dor. Explicamo-nos.

Não é incomum encontrarmos, seja nos processos de Avaliação Psicológica ou na Orientação de Carreira, a dificuldade com que as pessoas lidam com o tempo do acontecimento humano, com o tempo natural com que determinadas coisas necessitam para se transcorrerem. Na Avaliação o nível de tal dificuldade é aferido com argúcia e várias terminologias são empregadas em conformidade com a exigência da situação: impulsividade, ansiedade, dificuldade para procrastinar a recompensa, falha na compreensão das relações sociais e assim por diante. Toda semiótica empregada com destreza não cria um rótulo, pelo contrário, funda um porto donde zarpa tranquilamente o respeito e devido tratamento àquela pessoa.

Em Orientação de Carreira, sobretudo com ingressantes na vida adulta, acadêmica e mesmo profissional, a dificuldade de submeter-se ao tempo das coisas reflete-se na dúvida que os faz pendular para lá e para cá. A compreensão de que desejos presentes muitas vezes são convertidos em sementes para daí obterem frutos é dolorosa. Rasga ao peito o sinal da forçosa espera. Rasga ao peito e assoma-se às dores tantas outras que muitas vezes fazem com soçobrar o nosso espírito.

Não se trata de uma exclusividade de nossa atuação nesses dois serviços. É uma comunalidade vivida por pacientes de diversos terapeutas, em diversas abordagens. Não se trata de um privilégio ou situação de um dado contexto, mas sim de uma “condição humana”, algo que rotineiramente todos enfrentam. O presente suga-nos uma resposta e nem sempre a resposta ofertada é voz a tudo que imerso em nós resta.

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Um ponto salutar para a compreensão disso é uma metáfora com o sedento caminhante que se depara com um cântaro cheio de água. Após caminhar durante horas e horas por paragens duras, sem encontrar poço ou outra fonte na qual pudesse satisfazer o que lhe corrói a boca, a garganta, o peito e toda força espiritual, vê-se diante de um miraculoso cântaro. Confirma-se-lhe a realidade do fato, o cântaro não é mera ilusão, é verdadeiro. Abre-o e vê que a água é boa. Põe-se a beber. Mas a maneira como o sedento bebe dessa fonte reflete sua maior ou menor habilidade em lidar com o tempo dos acontecimentos.

É fato que o cântaro está repleto de água. É fato de que sua boca está sedenta. É justo que a sorva até a última gota. É justo que possa se saciar. No entanto, não é virando sobre si todo o conteúdo do cântaro de uma só vez que sua sede será vencida. Se dobrar o recipiente de uma só vez, parte do conteúdo se verterá para dentro de si, mas substancial parcela cairá por sobre suas vestes, reduzindo a parcela de água a ingerir. Fato é que terá conforto em se refrescar, mas o cântaro não o tirou daquela situação de caminhante. Carecerá de água ao longo da jornada, e tendo-a derramado sofregamente resta-lhe agora esperar encontrar outro cântaro.

Ora, muitas vezes o nosso desejo de aderir à determinada realidade é tanto que perdemos o juízo de nossa genuína necessidade. A metáfora é curta para o longo espírito humano de necessidade, mas deixa claro que muitas vezes é a parcela que nos fortalece a próxima parcela. Se se deixa enganar pelo aparente conforto do refresco inicial, o navegante deixa de compreender que poderia fazer por si mesmo mais do que dar a si um gole afoito e curto.

Na vida cotidiana, o gole afoito assume fachadas variadas. Exigimos respostas além da conta, cobramos pessoas por coisas que não competem a elas, imputamos dores com posturas pouco flexíveis, muitas vezes queremos que um futuro inteiro aconteça num encontro trivial… Em suma, inúmeras situações nas quais nosso desejo de encontrar uma resposta, faz com que percamos o senso da relação tranqüila com o próximo. Queremos num gole só resolver o que precisa de pacífica e continuada deglutição. Só assim se pode sorver, experimentar, degustar o valor de cada instante.

Cada um possui uma capacidade maior ou menor para lidar. É algo que pode ser fortalecido, com os trabalhos de reflexão, com o apoio adequado. Profissionalmente mas também na própria vida, no contato com amigos, pais, parentes, etc., que nos auxiliam.

Isso parece conversa careta, recomendações de ajuda abstrata e distante da realidade, pois na hora da dor é difícil olhar a situação com “tamanha” lucidez. Pois sim, não há como negar o caráter perfurante desses instantes. Mas há sim uma capacidade outra, nossa, particularmente natural, a dotação que temos de responder a tais instantes. De tomar o cântaro às nossas mãos. De tomar um gole de cada vez. Para assim fazer dele um bornal que segue junto conosco. Daquela fonte primeira jorra um batel fluente da nossa própria jornada.

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